Foto: Arquivo pessoal |
Desde a Constituição de 1998, o Pantanal Mato-Grossense é considerado Patrimônio Nacional. A partir de 2000, por decisão da Unesco, é reconhecido também como Patrimônio da Humanidade e Reserva da Biosfera.
Maior planície inundável do planeta, ele se estende por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul (a maior parte), Bolívia e Paraguai. A sazonalidade regular das cheias e secas dos rios que o formam determina a abundância e exuberante diversidade de seus animais, incluindo os peixes, e plantas.
A questão é que se prevê para essa área a construção de 135 usinas hidrelétricas — a maioria de pequeno porte –, sendo que 44 já estão em operação. Elas podem acarretar danos irreparáveis aos ecossistemas pantaneiros e às populações ribeirinhas, alertam pesquisadores e a Rede Pantanal de ONGs e Movimentos Sociais.
“São previsões baseadas em pesquisas científicas; impactos graves já aconteceram em outros rios e bacias do país após os barramentos”, adverte a bióloga e cientista Débora Calheiros, que, em entrevista recente, ao Viomundo, denunciou: “As135 hidrelétricas previstas na região têm alto risco de alterar o pulso de cheias e secas dos rios do Pantanal e afetar diretamente a produção pesqueira e a segurança alimentar de pescadores e ribeirinhos, bem como a atividade econômica da pesca profissional e turística da região”.
Débora troca em miúdos:
* O pulso de inundação do ecossistema, também conhecido como período de cheia e seca anual, tende a sofrer distorção com a implantação de reservatórios para aproveitamento hidrelétrico.
* Em conseqüência, a subida e descida das águas não estará mais condicionada ao fluxo natural dos rios, mas às necessidades de produção de energia elétrica de todo o país, coordenada pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), via Sistema Interligado Nacional (SIN).
* Resultado: alteração do funcionamento ecológico do Pantanal, impedindo a migração de peixes, fluxo de nutrientes e organismos e a recomposição das pastagens nativas. Com isso, diminuirá a produção pesqueira, afetando os pescadores, turismo de pesca e a produção pecuária tradicional, entre outros problemas.
Além disso, segundo o próprio setor elétrico (EPE), o potencial hidrelétrico do Pantanal já está sendo explorado em nível elevado .
“Cerca de 70% da capacidade de geração de energia da bacia do Alto Paraguai [ onde se localiza o Pantanal] já está instalada e produzindo energia. Os 135 projetos, entre os atuais e os previstos, representam apenas cerca de 2% do fornecimento de energia para o país”, avisa Débora. “O professor Dorival Jr, da Federal de Mato Grosso, lembra ainda que só o que Itaipu verte [deixa de movimentar as turbinas e produzir energia] é praticamente o mesmo que a Bacia do Alto Paraguai tem potencial para gerar. Portanto, a sociedade brasileira e pantaneira precisa decidir, agora, o que quer para o seu futuro próximo: gerar 2% de energia para o Brasil ou conservar o Pantanal.”
Há 26 anos Débora investiga a ecologia de rios e planícies de inundação e há 23 trabalha na Unidade Pantanal da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). É considerada uma experiente pesquisadora na questão.
Devido principalmente às suas críticas à construção de um poluidor pólo siderúrgico e gás-químico no Pantanal e, mais recentemente, à implantação de 135 usinas hidrelétricas sem avaliação do efeito sinérgico de todos esses empreendimentos, Débora tem sido alvo de censuras e represálias.
Por exemplo, de 2008 a 2010, a Embrapa retirou-a das representações oficiais sobre gestão de recursos hídricos e bacias hidrográficas da região pantaneira, bem como das discussões no Conselho Nacional de Recursos Hídricos sobre a implantação de hidrelétricas na bacia.
Porém, em 23 de agosto, Débora, seus colegas pesquisadores e a Rede Pantanal de ONGs, apoiados decididamente pelos ministérios Público Federal (MPF) e Estadual (MPE) de Mato Grosso do Sul, tiveram uma primeira vitória. Foi na Justiça.
JUSTIÇA SUSPENDE LICENÇA AMBIENTAL PARA 135 HIDRELÉTRICAS NO PANTANAL
A 1ª Vara da Justiça Federal de Coxim (MS) determinou a suspensão de licenças para hidrelétricas no entorno do Pantanal até que estudos de impacto ambiental acumulado sejam realizados e aplicados. A medida atinge todas as usinas. Ou seja, as que estão em projeto ou em fase de instalação, assim como as já em operação; neste caso, as autorizações não serão renovadas enquanto os estudos não forem concluídos.
A decisão, em caráter liminar, foi a pedido do MPF e do MPE-MS, que entraram com ação civil pública contra União, estados de MT e MS, Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul).
Segundo a decisão judicial, existe “prova inequívoca” de que os empreendimentos estão sendo instalados sem a observância das normas protetivas básicas, que inclui o prévio estudo de impacto ambiental em toda a Bacia do Alto Paraguai. A bacia é formada por áreas elevadas (planalto) que circundam a planície pantaneira. As barragens para as hidrelétricas estão sendo construídas na área de transição planalto-planície dos principais rios formadores do Pantanal, aproveitando o desnível e queda de água para aproveitamento
A decisão enfatiza:
“Diante de tão claro arcabouço normativo tendente à preservação ambiental, somente um espírito apegado aos sofismas e ilusões poderia subtrair razão à pretensão dos requerentes”.
Ainda acrescenta:
“Não há nenhuma razão plausível para se prosseguir sujeitando, por mais um dia que seja, o ambiente pantaneiro a riscos tão consideráveis”.
Caso a decisão judicial seja descumprida, a multa por licença expedida é de R$ 100 mil.
Atualmente, as licenças ambientais são fornecidas individualmente, considerando cada empreendimento hidrelétrico. Contudo, salientam o MPF e o MPE-MS na ação:
“… em um bioma complexo e sensível como o Pantanal, não basta somar os impactos individuais, é preciso analisá-los em conjunto, considerando toda a Bacia do Alto Paraguai”.
“Sem o devido estudo do impacto acumulado das atividades e de medidas eficazes para evitar o colapso do sistema, danos irreversíveis podem ser causados ao meio ambiente e às mais de 4 mil famílias que dependem exclusivamente da Bacia para sobreviver. Reflexos ainda devem ser sentidos no turismo, na agricultura e na pesca, além de prejuízos a sítios arqueológicos da região”.
“Admitir a continuidade da expansão do setor elétrico na Bacia na qual está inserido o Pantanal, sem o adequado estudo de impactos cumulativos de empreendimentos hidrelétricos, é ato contrário à lei e à Constituição, capaz de ferir de morte um dos biomas mais notáveis do mundo”.
“A via judicial foi a única forma de obrigar os órgãos ambientais a realizar a Avaliação Ambiental Estratégica e prevenir futuros danos”
“A Avaliação Ambiental Estratégica deve ser realizada em toda a Bacia do Alto Paraguai, incluindo os estados de Mato Grosso do Sul e de Mato Grosso. O estudo deve ter como base um bibliografia especializada e contar com a participação de setores científicos e da sociedade civil organizada”.
“Apesar das censuras e perseguições na Embrapa, valeu a pena não abrir mão dos fundamentos científicos, legais e éticos, que regem o meu trabalho”, festeja Débora. “Ter nosso trabalho respeitado pelos colegas, pelo MPF, MPEs e agora pela Justiça é muito gratificante.”
Débora move processo contra a Embrapa por danos morais e sofrimento no trabalho (assédio moral). A Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho de MS ratificaram os argumemtos da empresa de que a cientista seria “ideológica e insubordinada”.
“Como puderam sustentar esta argumentação sem quaisquer provas?”, questiona Débora. “Ideológico é quem não informa a sociedade ou não permite deliberadamente o direito inequívoco à informação, à livre discussão com base em argumentação científica numa sociedade democrática. Por isso, reitero, a decisão da Justiça sobre as hidrelétricas foi muito gratificante.”
“Tomara que os gestores ambientais e de energia passem a olhar com mais cuidado para o Pantanal”, prossegue Débora. “Não podemos continuar a ter a mentalidade dos anos 70, ou seja, crescimento econômico para pequena parte da sociedade e custos sociais e ambientais para a maioria.”
MINISTRA IZABELLA REÚNE-SE COM MOVIMENTOS SOCIAIS E SARNEY FILHO PROMOVE AUDIÊNCIA
No dia 28 de agosto, um novo avanço: mais de 1 ano após ser solicitada, representantes da Rede Pantanal foram recebidos em audiência pela ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. O tema da reunião foi, claro, a conservação do Pantanal, em especial a proliferação de hidrelétricas sem qualquer planejamento. Eles entregaram à ministra uma carta (íntegra aqui) e um dossiê baseado em pesquisas científicas, reivindicando uma decisão do Ministério sobre a questão e que a região faça parte da agenda da sua agenda.
A assessoria de imprensa de Izabella Teixeira informa que:
“a ministra determinou que vários setores do ministério analisem o problema e as possíveis soluções, que passam pela atuação do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e da Agência Nacional de Águas (ANA)”.
Outro avanço – e este já decorrente da decisão da Justiça de paralisar as licenças ambientais para hidrelétricas no Pantanal. No dia 6 de setembro, o presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, o deputado Sarney Filho (PV-MA), convocou reunião para debater a questão.
Ainda sem data marcada, ela deverá ocorrer após as eleições municipais. O deputado argumenta: “É uma questão relevante e gravíssima porque o Pantanal é hoje um destino ecoturístico do mundo e o ecossistema convive perfeitamente com a atividade econômica. Na medida em que se mexe no ecossistema e se cria o desequilíbrio, aquilo pode ir tudo por água abaixo”.
Para debater o tema, serão convidados os governadores de MT e MS, a bióloga Débora Calheiros, além de representantes do MP e da Associação Brasileira de Produtores Independentes de Energia Elétrica.
“Esta audiência pública será de extrema importância para a região pantaneira e a sociedade em geral”, vislumbra Débora. “Poderemos, enfim, esclarecer por que é absurdo implementar 100% de aproveitamento hidrelétrico no Pantanal em detrimento dos usos múltiplos dos recursos hídricos e dos serviços ambientais que a sociedade regional usufrui há centenas de anos.”
BACIA DO ALTO PARAGUAI
A área em branco corresponde à Bacia do Alto Paraguai; em verde, ao Pantanal. Os traços em azul são os principais rios da região
AS HIDRELÉTRICAS DO PANTANAL
As assinaladas com bolinha preta são as que geram menos de 1 MW; as bolinhas azuis, de 1 a 30 MW; e as vermelhas acima de 30 MW. Os círculos transparentes indicam as já em operação; os quadrados vazados, às planejadas
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