Foto: PIB Socioambiental |
Sentimos a tensão de perto tanto pelos depoimentos estarrecedores dados pelas lideranças das aldeias, como pela pressão e vigilância da sociedade branca em torno de qualquer movimentação em direção às comunidades indígenas. Quando visitamos as famílias do Acampamento Dourados, à beira da BR, acabou de sair dali um agente da FUNAI. Logo a seguir passou lentamente pela BR um carro da policia rodoviária federal nos observando, retornando logo em seguida da mesma maneira. A mesma viatura nos abordou na cidade de Dourados, quando íamos entrevistar o procurador Marco Antonio. Pediram documentos pessoais de todos que estávamos no veículo, os levaram à viatura e só nos liberaram depois de uns 15 minutos e dissermos que estávamos a serviço da Igreja. Ficamos com medo que poderia suceder o mesmo que aconteceu com a equipe canadense que, há pouco tempo atrás, gravou entrevistas e foi presa, com o material apreendido. Somente foram liberados mediante intervenção do gabinete da presidência da república, mas nem todo material foi devolvido.
Perguntamos ao procurador Marco Antonio sobre a causa de tanta violência contra os povos indígenas, e ele disse que é por ódio racial. A entrevista de “Lenço Preto” publicada no Jornal Eletrônico Midiamaxnews confirma isso: “Nós vamos partir pra guerra, e vai ser na semana que vem. Esses índios aí, alguns perigam sobrar. O que não sobrar, nós vamos dar para os porcos comerem”. Esse ódio se manifesta em diversos acontecimentos que não são fatos isolados: nas marcas de bala que o Guarani Kaiowá nos mostraram em seus corpos, na morosidade e descaso da justiça, em flagrantes e depoimentos importantes que não aparecem nos autos do processo da polícia federal, no tratorista que aplicou agrotóxicos e parou a máquina em frente da aldeia e continuou jogando veneno. Uma anciã da aldeia morreu logo em seguida e, segundo depoimentos dos Guarani, foi por causa do veneno.
Na raiz da violência está a cobiça pela terra fértil, que começou na década de 1880, com o cultivo de erva mate, e se estende até os dias de hoje. No fim do século XIX e início do século XX se instalaram nesta região fazendas de gado, política incentivada mais tarde, por Getúlio Vargas, que promoveu a famosa “marcha para o Oeste”. É assim que surge a Colônia Agrícola de Dourados em pleno território indígena. Mais empreendimentos agropecuários ocuparam os demais espaços do território (tekoha) Guarani Kaiowá nas décadas seguintes, empurrando-os para as oito reservas indígenas demarcadas entre 1915 e 1928 pelo Serviço de (des)Proteção aos Índios – SPI. Ao todo somam 18.124 ha, onde vivem atualmente 40 mil Guarani-Kaiowá. “A demarcação dessas reservas constitui-se em importante estratégia governamental de liberação de terras para a colonização e consequentemente submissão da população indígena aos projetos de ocupação e exploração dos recursos naturais por frentes não indígenas” (Guarani Retã 2008, p. 12).
A “revolução verde”, com a mecanização das lavouras, provocou o fim das aldeias refúgio no fundo das fazendas. O início do reinado do império da monocultura da soja nos anos 70 e a criação do pró-álcool na década de 80 acabou com o restante das matas e a biodiversidade. Diante da terra tombada, restaram os confinamentos como espaços de refúgio e a submissão à superexploração de trabalho nas usinas de açúcar e álcool.
A situação de violência a que estão submetidos acaba gerando também conflitos internos que resultam também em mortes trágicas. Tradicionalmente, sempre que surgia um conflito interno, os grupos familiares se separavam territorialmente. Agora não há mais para onde ir. A única chama da esperança é retomar a tekoha da qual foram expulsos ao longo do último século. Exilados de suas terras e espaços sagradas, começaram um processo de retomada de suas terras. Uma anciã, Xurite Lopes, que foi expulsa com seu povo em Kurusu Ambá pelos anos de 1940 assim se expressa: “quando eu era pequena eu ia por aí juntar frutas. Não havia fazendeiros aqui, nem acolá. As pessoas viviam em total liberdade. Só depois que vieram os estancieiros, começaram a empurrar, empurrar a gente até Amambaí. Daqui nos expulsaram. Depois de muito tempo, agora que já estou velha, estou regressando”. E começa a cantar: “Nós já regressaremos... Venham alegrar-se conosco aqui... Venha, vamos adornar-nos, diz minha terra...”.
Depois continua: “Este é nosso território tradicional. Tenho conhecimento de ponta a ponta, onde ficava nossa casa de oração, o lugar de nossos rituais, de nossa dança, sei onde abundam os cardos aproveitados por minha mãe e minha avó, e onde estão as fontes de água.”
Marçal Tupã’i foi o primeiro cacique a tombar. Bem profetizou o poeta e compositor Luís Augusto Passos, no refrão da música que homenageia este valoroso guerreiro: “Marçal, Marçal, tua morte só apressa o dia, em que o alto preço desta covardia, será cobrada pelos Guarani”. Em torno de 20 aldeias tradicionais foram retomadas desde os anos 80, com inúmeros mortos e feridos. Uma dezena de acampamentos se espalha à beira das rodovias de Mato Grosso do Sul. Mas não tem condições de plantar. Dependem da assistência dos órgãos governamentais. Assim o resume Genito, filho do cacique Nísio, assassinado em novembro de 2011: “Aqui há muitas crianças, muitos anciãos; temos filhos e filhas que precisam ir à escola; e também já queremos cultivar; precisamos de atenção na parte da saúde, mas os fazendeiros jogam veneno sobre nós e aqui todos estamos tossindo por causa disso (...) Também precisamos de energia solar para carregar as nossas baterias. Sair daqui para carregar nossas baterias até a cidade de Amambaí, Ponta Porã, Aral Moreira, são cidades que ficam longe daqui.”.
O assassinato de Nísio foi com requintes de barbárie. Sumiram com o corpo, aumentando geometricamente o sofrimento. Os Guarani-Kaiowá estão muito preocupados com a segurança. Vigiam dia e noite para não serem pegos desprevenidos.
São estas as únicas armas que eles tem: um celular e uma câmera fotográfica sem autonomia de bateria, a dança, a reza e o canto. Encontramos os Guarani-Kaiowá de Guaiviry ampliando a sua casa de reza. O altar havia sido destruído três vezes pelos pistoleiros, mas o encontramos reconstruído. Em todas as aldeias fomos recebidos com cantos de reza e danças circulares. “Eu continuo dançando porque quero ver nossa área demarcada. Quando vão dizer: hoje vamos demarcar vossa terra, voltarei a ser mais feliz. A verdade lhes digo: isso é o que mais quero para que meus descendentes se esparramem como sementes por esta terra” (Xurite Lopes).
“Vamos fazer aqui uma grande festa da dança, festa religiosa para falar com nossos deuses, porque já faz demasiado tempo que as palavras se cruzam, vem daqui, de acolá e nos dizem que os fazendeiros tem demasiado dinheiro e poder; o governo do Brasil e os estancieiros estão juntos, um ao lado do outro”, disse o Pajé, diante da casa de reza em construção.
A guerra é desigual. Quanto Sepé Tiaraju, hoje reconhecido como herói nacional, combateu com arcos, flechas e lanças os canhões do exército da Espanha e Portugal, no século XVIII, o resultado foi o seguinte: Do lado dos exércitos espanhol e português morreram dois soldados; da parte do exército Guarani e São Sepé 1700 Guarani. Preferiam morrer a entregar a terra de seus ancestrais.
Hoje não é diferente, como constata Genito que hoje lidera o grupo: “Desde 1983 os fazendeiros já mataram 583 indígenas. Nós, os indígenas, nunca temos matado um só fazendeiro, porque não temos armas e sempre estamos sendo assassinados como galinhas. Pensem! Se nós matamos a um estancieiro, não vão tardar a agarrar-nos. Mas até agora nenhum fazendeiro foi preso”.
A disposição é de resistir até à morte: “Somos permanentemente expulsos. Mas agora nós vamos consumir-nos nesta terra. Nossos antepassados foram consumidos nesta terra e então que nosso fim seja também aqui” (genro de Nísio). “Não somos muitos aqui”, afirma o Pajé, “mas eu não vou recuar dos fazendeiros porque eu sou aquele que canta”.
O que fazer diante de uma situação de etnocídio tão premente aos nossos olhos?
Não podemos ficar passíveis, como se estivéssemos assistindo ao vivo o filme “O último dos Guarani-Kaiowá”.
Não é fácil reverter este quadro de desprezo e desterro dos povos indígenas que ameaça a sobrevivência destas nações. Ainda mais em tempos que o governo brasileiro aprofunda seu casamento com a demanda neoliberal, ao mesmo tempo em que está em alta nas pesquisas.
O mínimo que podemos fazer é criar um constrangimento ao governo brasileiro por estar promovendo um apartheid social entre os produtores de commodities e o povo brasileiro. Aos primeiros tudo, crédito, incentivos fiscais, alteração da legislação e até mesmo da constituição federal para engordar suas contas bancárias. Aos últimos altos encargos tributários, burocratização das líneas de crédito, empecilhos legais.
Precisamos também nos contrapor aos argumentos que os indígenas são um empecilho ao desenvolvimento econômico e que ocupam muita terra, 12,5 % do território brasileiro. O problema não são a preservação das terras indígenas, pois são garantia de diversidade de milhares de espécies de seres vivos e plantas, e contribuem com o meio ambiente da população do mundo inteiro. O problema é o grande latifúndio que produz commodities, mas acaba com a biodiversidade, polui o ar, os rios, os lençóis freáticos, o mar, e ainda provoca sérios problemas de saúde ao povo brasileiro com a aplicação de seus agrotóxicos.
Precisamos encontrar caminhos para mostrar à população local que é maravilhoso ser um país plural, de diferentes etnias e culturas, que temos, não só uma grande dívida social com os povos indígenas, mas que temos muito a aprender com eles.
* Trabalha no Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente – FORMAD, e é assessor do CEBI-MT.
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