quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Usina retrata conflitos do norte de MT


UNISINOS - Do instante em que brotam nas nascentes da Serras Azul e do Finca Faca, no Sul do Mato Grosso, até desembocarem no extremo Norte do Estado, fronteira com o Amazonas e o Pará, as águas do Teles Pires vão cortar todo o Cerrado, para depois mergulharem na floresta amazônica. Neste percurso de 1.431 quilômetros, entre um ecossistema e outro, o Teles Pires cruza regiões marcadas pela extração ilegal de madeira, ações de garimpeiros, conflitos indígenas, cidades de infraestrutura precária, assentamentos ilegais e caos fundiário.
É neste cenário que começaram a ser erguidas as primeiras usinas do "Complexo Teles Pires", projeto energético do governo que prevê a instalação de seis hidrelétricas na região, com capacidade de gerar 3,6 mil megawatts (MW). Esse conjunto de obras, que movimentará cerca de R$ 20 bilhões e mais de 20 mil empregos diretos nos próximos anos, transforma o Complexo Teles Pires em um dos maiores empreendimentos de geração do país, só atrás das usinas do rio Madeira, em Porto Velho, e de Belo Monte, no Pará.

A reportagem é de André Borges e publicada pelo jornal Valor, 28-09-2011.

Por estradas e pelo rio, o Valor percorreu as regiões que já começaram a sentir os efeitos da construção de Colíder e de Teles Pires, as duas primeiras hidrelétricas do complexo que foram licitadas e que tiveram suas obras iniciadas recentemente. O que se evidencia, das conversas com a população local e o poder público, é que não houve compreensão quanto ao reais impactos socioambientais que as obras vão gerar na região.

A usina de Teles Pires, maior empreendimento do complexo, é o exemplo mais evidente dessa situação. Em Alta Floresta, município de 49 mil habitantes que será atingido pela construção da usina, a prefeitura acredita que até 30 mil pessoas deverão migrar para a cidade nos próximos dois anos. O consórcio Teles Pires, porém, responsável pela construção e operação da hidrelétrica, estima que 12 mil pessoas deverão migrar para a região. "Os números são absolutamente contraditórios. Nosso levantamento mostra que, de um ano para cá, 10 mil pessoas de fora estão circulando pela cidade por conta da usina", diz o secretário de administração de Alta Floresta, Rodrigo Arpini.

O entendimento sobre os impactos socioambientais é item básico para que os municípios possam apresentar uma lista de ações compensatórias devido ao saldo negativo gerado pelas usinas. No caso de Teles Pires, que teve as obras iniciadas há apenas três semanas, a desconfiança dos municípios quanto às projeções apresentadas pelos empreendedores da usina levaram a uma exigência inédita: entre as obrigações do consórcio Teles Pires foi incluída a contratação de uma consultoria independente, uma empresa que irá avaliar se, durante o período de construção da hidrelétrica, os impactos sentidos pelos municípios são, de fato, aqueles projetados pelo consórcio. 

Se for encontrada qualquer situação diferente daquela previamente desenhada, os empreendedores serão obrigados a abrir o bolso para resolver o problema. Como garantia, foi criado um fundo de reserva de R$ 10 milhões para bancar os eventuais custos extras. Esse recurso ficará disponível para os municípios até um ano após o início de operação da usina e terá de ser recomposto toda vez que for utilizado. "Precisávamos dessa segurança, porque realmente não temos uma noção clara do que vai ocorrer com a cidade", diz Gércio Luiz França, coordenador do departamento de projetos de Alta Floresta.

O projeto do consórcio Teles Pires, sociedade formada pela Neoenergia (50,1%), Eletrobras Eletrosul (24,5%), Eletrobras Furnas (24,5%) e Odebrecht Participações e Investimentos (0,9%), se baseia em estudos realizados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Quanto ao impacto nas comunidades indígenas Kaiabi e Apiaká, que habitam a região, estudos interdisciplinares foram conduzidos por antropólogos e biólogos da empresa JGP Consultoria. A reportagem procurou a EPE para comentar o assunto, mas a autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia não se manifestou até o fechamento dessa edição.

Nesta semana, conforme adiantou o Valor na semana passada, o Ministério Público Federal no Pará e o Ministério Público do Estado Mato Grosso enviaram uma notificação conjunta ao Ibama, pedindo que o órgão paralise as obras de Teles Pires enquanto as dúvidas sobre os impactos da obras não forem esclarecidos e a auditoria externa, contratada. O consórcio Teles Pires nega formalmente qualquer ato de negligência para contratar o serviço de auditoria e sustenta que aguarda apenas a indicação da empresa pelos municípios para que o contrato seja formalizado.

As desavenças entre poder público e privado estão ainda mais acirradas na construção da usina de Colíder, entre os municípios de Nova Canaã e Colíder. A hidrelétrica de R$ 1,6 bilhão e 342 megawatts (MW) de potência foi iniciada em março, mas desde a semana passada está embargada pelo Ministério Público Estadual (MPE) do Mato Grosso e a Secretaria de Meio Ambiente (Sema) do Estado. A paralisação, diz o promotor de Justiça, Marcelo Caetano Vacchiano, foi motivada por uma série de irregularidades nas áreas de engenharia e meio ambiente cometidas pela Companhia Paranaense de Energia (Copel), responsável pela usina. O prefeito de Colíder, Celso Paulo Banazeski (PR), pede R$ 44 milhões em ações compensatórias para o município. A Copel, diz o prefeito, não fez até agora nenhum repasse à cidade. Uma reunião para negociar um acordo com a empresa está marcada para amanhã, em Cuiabá.

Enquanto os acordos não saem, o dia a dia das pequenas cidades do entorno das usinas exibe os primeiros efeitos do que vem pela frente. Em Alta Floresta, há 15 hotéis disponíveis, mas outros cinco já estão em construção. O aeroporto terá de ser ampliado. Pequenos empresários da cidade, como Karen Anne Back, dona da locadora de veículos Viabili, sentem na pele a movimentação. Um ano atrás, Karen comprou a pequena locadora, que até então tinha seis veículos usados na garagem. Hoje está com 86 carros, dos quais a maioria é caminhonete, para aguentar as estradas de terra. "É tudo por conta da usina. Acredito que dobraremos nossa frota em um ano", diz Karen, que cobra R$ 500 pela diária de uma picape.

O crescimento do comércio desperta toda sorte de interesses na região. Na semana passada, entrou no ar um site de prostituição em Alta Floresta. Panfletinhos com garotas de programa passaram a circular no entorno do pequeno Aeroporto municipal Benedito Santiago. Foi um reboliço na cidade. Preocupada com a agitação, a prefeitura foi à caça e conseguiu localizar a proprietária do site, que acabou retirando a página da internet. Os panfletos foram recolhidos.

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