Foto: Mercio Gomes |
Leilane Marinho/ O Eco Amazônia - 07/07/2011 - A paisagem da Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé. Desmatamento de 85% das matas serviu de argumento para aprovar retirada dos Xavantes.
Remanejar os índios de um cerrado devastado para a terra pantanosa do Parque Estadual do Araguaia (PEA). Esta foi a solução “pacífica” apresentada pela Assembléia Legislativa do Mato Grosso para o conflito entre índios Xavantes e fazendeiros, que lutam entre si há mais de 40 anos pelo direito de ocupação da Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, localizada a 1.064 km de Cuiabá (MT), no município Alto da Boa Vista, próximo a São Felix do Araguaia.
Homologada em 1998, Marãiwatsédé passou a ser uma área de posse permanente e de usufruto exclusivo do povo Xavante. Mas longe de resolver o impasse, a criação da TI impulsionou a invasão de mais de seis mil não-índios que hoje se recusam em sair da área.
Em 2010 a região foi a mais devastada no Mato Grosso. Dos seus 165 mil hectares, 85% foram desmatados nos últimos anos para a plantação de soja e pastagem. Os produtores locais incentivaram a ocupação irregular e a degradação ambiental como forma de inviabilizar o restabelecimento dos índios.
Foi exatamente a alta taxa de desmatamento a justificativa dada pelos deputados da Assembléia Legislativa, ao aprovarem a Lei número 9.564 - publicada no Diário Oficial no dia 27 de junho, que “autoriza o Governo do Estado a realizar permuta com a União, através da Fundação Nacional do Índio (Funai), da área correspondente ao Parque Estadual do Araguaia com a área homologada da Reserva Indígena Marãiwatsédé”.
“A TI Marãiwatsédé está toda degradada, o que os índios vão fazer no meio de pastagem? Lá no Parque [PEA] tem um habitat mais natural, é preservado e eles terão todas as condições para viverem conforme seus costumes”, justifica o deputado estadual José Riva (PP-MT), que com o deputado Adalto de Freitas, escreveu o Projeto de Lei que pede “a inserção da Nação Indígena Maraiwatsede no Parque Estadual do Araguaia e a regularização fundiária aos atuais ocupantes da área da reserva”.
Para Riva, tirar as famílias que construíram “casas, escola, beneficiadora de arroz e até laticínio” é um crime contra Posto da Mata, vila estabelecida dentro da TI. “Não havia índio lá, sempre existiram foram famílias agricultoras e agora que está chegando índio de todo local”, argumenta o deputado.
Manejando os Xavantes
FUNAI não concorda
Só em 1992, a TI Marãiwatsédé começou a ser delimitada pela Funai, mas dos 200 mil ha identificados como território tradicional dos índios, 168 mil era incidentes da fazenda Suiá-Missu. Neste mesmo ano, após pressões internacionais, os ocupantes ilegais comprometeram-se em devolver a área ao povo xavante.
Os parlamentares alegam que o maior motivo para a remoção dos índios são os “prejuízos que serão amargados pela população do Centro Oeste mato-grossense”, uma vez que a dita TI interromperá a continuidade das BR 158 e 224, “importantes e únicas vias de escoamento da produção agrícola dos produtores da região”.
A Funai publicou nota oficial dizendo que a proposta do governo do estado de Mato Grosso não encontra respaldo legal. “A proteção constitucional garantida às terras indígenas veda qualquer possibilidade de transação das áreas reconhecidas como de uso tradicional, visto que são indispensáveis à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, nos termos do art.231 da Constituição Federal”, diz a nota.
Segundo Riva, a remoção só será feita após acordo entre Funai, Governo do Estado e os índios. “Essa é uma ideia da classe política, mas não se sabe o que vai acontecer. Sabemos que 90% dos índios querem ir para o PEA e só haverá remoção se eles aceitarem”, detalha.
A incógnita que paira é como o governo pretende permutar uma área que não possui nem 1% das suas terras regularizadas. “O que existe são processos de compensação de Reservas Legais em andamento. Aí já é outra confusão”, adianta Fátima Sonoda, bióloga e técnica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente.
Área inundável e prioritária
A relação entre os Xavantes e o ambiente do Parque Estadual do Araguaia não é conhecida. Eles devem depender do governo. Foto OPAN
Criado em 2001, o Parque Estadual do Araguaia foi classificado como Área Prioritária para a Conservação pelo Ministério do Meio Ambiente e é um dos últimos redutos da fauna e flora da imensa planície de inundação do Araguaia, abastecida pelo rio do mesmo nome e Rio Mortes. Com seus 223.169,54 hectares, o parque é a maior unidade de conservação de Proteção Integral das 45 Unidades de Conservação (UCs) que compõem o Sistema Estadual de Unidades de Conservação do Mato Grosso.
Boa parte do PEA sofre inundação sazonal periódica durante seis meses todos os anos. Sua característica pantanosa faz da região um local de difícil acesso, com muitas áreas isoladas e inacessíveis. “Tenho certeza que os Xavante não ficarão nem um pouco satisfeitos com esta situação. Eles ficarão isolados e terão que depender de ajuda governamental para se manter durante este período mais crítico [de inundação]. O acesso de carro no Parque é impossível”, conta Beatriz Marimon, que trabalho no PEA desde 1998 e é professora da UNEMAT de Nova Xavantina.
“As estratégias de vida dos índios foram selecionadas para fitofisionomias de Cerrado não inundáveis, literalmente não é a praia deles. Outro ponto que dificultara a adaptação é o fato da área do Parque não possuir nenhum vínculo ancestral com os Xavantes, que é primordial para a perpetuação dos seus modos de vida”, diz Alexandre Milaré Bastitella, coordenador de Unidades de Conservação da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema), que ficou sabendo da possibilidade de transferência dos índios através da imprensa.
Além da água, outro ponto conflituoso que impediria a ida dos Xavantes para o PEA seria o impacto ambiental causado com a chegada dos índios, que afetaria o frágil e complexo sistema de lagos que segundo Bastitella, são extremamente importantes para a manutenção da fauna da região do Pantanal do Araguaia.
O coordenador conta que a UC serve de “área de cria e recria” para diversas espécies em risco como o pirarucu, a tartaruga da amazônia, a onça pintada e o cachorro vinagre. “Aproximadamente 40% das espécies de aves registradas para o Mato Grosso, ocorrem no parque”, completa.
Beatriz lembra a fama de exímios caçadores dos Xavantes e avalia como “loucura” a articulação dos políticos. “No período da seca os índios realizam as famosas ‘caçadas de fogo’, onde utilizam o fogo para encurralar a caça. Considerando que a região do PEA é uma das poucas áreas que ainda tem uma fauna bem preservada, em poucos anos ela estaria totalmente comprometida, visto que a pesca é uma atividade secundária para estes índios”, observa.
Prazo não cumprido
Em 2003, os Xavantes começaram a voltar para território determinado pela FUNAI. Articulação na Assembléia do Mato Grosso é uma reação.
Em 2003, os índios iniciaram o caminho de retorno à morada dos seus antepassados, ocupando apenas 10% da TI. Em agosto de 2010, uma decisão unânime do Tribunal Regional Federal decidiu em favor dos xavantes, reconheceu seus direitos à Marãiwatsédé e considerou de má-fé a ocupação dos não-índios em terras da União, mas só recentemente o Ministério Público federal (MPF) decidiu pela retirada das famílias de fazendeiros e posseiros.
No último dia 16 de maio, a Justiça Federal deu um prazo de 30 dias (já vencidos) para a execução da sentença, sem chance de recurso, que pede a retirada dos invasores. A decisão acelerou as movimentações políticas do estado em prol de produtores e antes mesmo do MPF apresentar o plano de desintrusão da área indígena, a saída dos xavantes começou a ser articulada através da legislação estadual.
O governador e quase toda a Assembléia Legislativa de Mato Grosso são aliados ou representantes diretos do agronegócio. Este posicionamento, esta “pseudo solução”, é legislar em causa própria, pois vai beneficiar os que há décadas exploram e devastam aquela região, que não pode ser vendida ou disposta para outrem”, explica Gilberto Vieira, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Vieira esteve em Marãiwatsédé em 2004, junto com o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito ao Meio Ambiente, Jean Pierre Leroy, que reforçou a retirada dos invasores não-índios e sugeriu a recuperação ecológica da área, sugestão acatada pelos juízes. No relatório, Leroy disse que "o sentimento de impunidade e a manipulação dos políticos locais agravaram a situação, já que os invasores, mesmo conhecedores de que a área já era uma Terra Indígena, não acreditavam que a Justiça realmente determinaria, um dia, o retorno dos índios à terra que lhes é de direito".
ICMS Ecológico
Toda a população do município de Alto da Boa Vista também seria prejudicada diretamente pela saída dos Xavantes de seu município. A TI Marãiwatséde é responsável diretamente por 62,61% do valor repassado anualmente aos cofres públicos do município através do ICMS Ecológico.
Em valores acumulados, entre os anos de 2002 a 2009, dos R$ 19.850.351,33 repassados ao município, R$ 12.347.563,44 foram do ICMS Ecológico, compensação a cidade por conter em seu território a TI Marãiwatséde.
O Parque Estadual do Araquaia tem 225 mil hectares, 70 mil a mais que a TI, e é considerado rico em recursos naturais. Mas não é o tamanho que atrai os xavantes. Mesmo degradada, o que leva os índios a se fixarem na TI Marãiwatsédé é o seu significado imaterial, presente nos locais reconhecidos como sagrados.
Valor da terra é imaterial
Lá existem os restos de inúmeras aldeias antigas, cemitérios e a memória da história recente dos Akwe-Xavante orientais. “Aqui nós temos uma história nossa, é uma terra sagrada que possui coisas que não tem como transferir. Porque o governo não leva essas pessoas para outro lugar”, questiona Cosme Rite, filho do cacique Damião Paradzane, que já afirmou o interesse da comunidade em regressar ao seu território de origem.
“Os Xavante, como todos os povos indígenas, não veem seu território como um pedaço de terra que possa ser transferido para outro lugar. Mesmo devastada, lá continua sendo Marãiwatsédé e poderá ser recuperada e reflorestada”, argumenta Gilberto.
Através de nota, o cacique Agnelo Xavante declarou que não há possibilidades de negociação do território. “Não vamos desocupar nosso território tradicional Marãiwatsédé para dar lugar às plantações desse agronegócio sujo que se espalha como praga no Mato Grosso e por todo o país [...] É uma afronta ao que bem entendemos como nossos direitos amparados pela Constituição Federal e por organismos internacionais de Direitos Humanos, como a convenção 169 da OIT”, disse Agnelo.
Cercados pelas ameaças dos fazendeiros, cerca de mil índios resistem ilhados em uma só aldeia. Como formam de garantir a segurança alimentar e resgatar os costumes tradicionais, trabalham na recuperação das áreas desmatadas plantando frutos de cerrado, inhame, milho e feijão Xavante, entre outros alimentos que fazem parte da cultura dos índios. “Estamos nos estruturando aqui e vamos permanecer”, finaliza Cosme.
0 comentários:
Postar um comentário