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Aflredo Wagner de Almeida - 1. As teorias do pluralismo jurídico, para as quais o direito produzido pelo Estado não é o único, ganharam força com a Constituição de 1988. Juntamente com elas e com as críticas ao positivismo, que historicamente confundiu, de maneira deliberada, as chamadas "minorias" dentro da noção usual de "povo", também foi contemplado o direito à diferença, enunciando o reconhecimento de direitos étnicos.Os preceitos evolucionistas de assimilação dos "povos indígenas e tribais" na sociedade nacional foram deslocados pelo estabelecimento de uma nova relação jurídica entre o Estado e estes povos com base no reconhecimento da diversidade cultural e étnica e dos direitos territoriais que lhes são correspondentes.
Mesmo levando em conta que o poder é efetivamente expresso sob uma forma jurídica ou que a linguagem do poder é o direito, há enormes dificuldades de implementação de disposições legais que envolvem reconhecimento de direitos territoriais, sobretudo em sociedades autoritárias e de fundamentos coloniais e escravistas, como no caso brasileiro. Nestes quase 20 anos que nos separam da promulgação da Constituição Federal tem prevalecido ações pontuais e relativamente dispersas, num ritmo bastante lento, focalizando fatores étnicos e direitos territoriais, mas sob a égide de outras políticas governamentais, tais como a política agrária e as políticas de educação, saúde, habitação e segurança alimentar. O resultado geral é que os territórios de povos indígenas e quilombolas e dos demais povos e comunidades tradicionais permanecem em sua grande maioria sem reconhecimento jurídico formal e tem sido objeto de conflitos sociais.
Não obstante tal resultado, pode-se asseverar que de 1988 para cá o conceito de "terras tradicionalmente ocupadas", vitorioso nos embates da Constituinte, tem ampliado seu significado, coadunando-o com aspectos situacionais, que caracterizam hoje o advento de identidades coletivas, e tornou-se um preceito jurídico marcante para a legitimação de territorialidades específicas e etnicamente construídas.
Em junho de 2002, evidenciando a ampliação do significado de "terras tradicionalmente ocupadas" e reafirmando o que os movimentos sociais desde 1988 tem perpetrado, o Brasil ratificou, através do Decreto Legislativo n.143, assinado pelo Presidente do Senado Federal, a Convenção 169 da OIT, de junho de 1989. esta Convenção reconhece comocritério fundamental os elementos de autoidentificação, reforçando, em certa medida, a lógica dos movimentos sociais.Para além disto o Art. 14 reza o seguinte em termos de dominialidade:
"Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam".
Além disto o Art. 16 aduz que:
"Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento."
Este direito de retorno se estende sobre um sem número de situações distribuídas por todo o país, que resultaram em deslocamentos compulsórios de populações inteiras de suas terras por projetos agropecuários, projetos de plantio de florestas homogêneas (pinus, eucalipto), projetos de mineração, projetos de construção de hidrelétricas, com grandes barragens e projetos de bases espaciais e militares.
O texto da Convenção, além de basear-se na autodefinição dos agentes sociais, reconhece explicitamente a usurpação de territórios e de terras desde o período colonial, bem como reconhece casos de expulsão e deslocamento compulsório e amplia o espectro dos agentes sociais envolvidos, referindo-se de maneira explícita à categoria "povos".
No caso da formação histórica brasileira pode-se dizer que tal dispositivo abre possibilidades para o reconhecimento jurídico-formal de múltiplas situações sociais que abarcam uma diversidade de agrupamentos tornados invisíveis pelas pretensões oficiais de homogeneização jurídica da categoria "povo" desde o domínio colonial. A pluralidade implícita na noção de "povos" publiciza diferenças. Ao mesmo tempo chama a atenção para territorialidades específicas, que tem existência efetiva na história contrapondo-se ao modelo agrário exportador, apoiado no monopólio da terra, no trabalho escravo e em outras formas de imobilização da força de trabalho.
Estas novas formas de ocupação e uso comum dos recursos naturais emergiram pelo conflito com os grandes latifúndios e delinearam uma resistência, seja através dos quilombos, dos movimentos messiânicos, das diversas formas de banditismo social e das inúmeras maneiras das unidades familiares camponesas manifestarem sua autonomia de decisão sobre onde, como e o que plantar. As territorialidades específicas construídas a partir de cada uma destas instituições sociais e grupos podem ser entendidas também como resultantes de distintos processos de territorialização, apresentando delimitações mais definitivas ou contingenciais, dependendo da correlação de forças em cada situação social de antagonismo.
Estas territorialidades específicas distinguem da noção estrita e literal de "terra" e atém-se a expressões que manifestam elementos identitários ou correspondentes à sua forma específica de territorializaçpão. Para efeito de ilustração, pode-se mencionar resumidamente as chamadas terras de preto, terras de índio ( que não se enquadram na classificação de terras indígenas, porquan to não há tutela sobre aqueles que as ocupam permanentemente), terras de santo ( que emergiram com a expulsão dos jesuitas e com a desagregação das fazendas de outras ordens religiosas) e congêneres,, que variam segundo circunstancias específicas, a saber: terras de caboclos, terras da santa, terras de santíssima (que surgiram a partir da desestruturação de irmandades religiosas), terras de herdeiros (terras ssem formal de partilha que são mantidas sob uso comum), terras de ausentes e outras mais.
A Constituição de 1988 e a Convenção 169 da OIT logram contemplar estas distintas situações sociais referidas às regiões de colonização antiga, assim como aquelas que caracterizam regiões de ocupação recente, ao colocar no tempo presente o sentido de "terras tradicionalmente ocupadas", libertando-o da "imemorialidade", da preocupação com a "origem", do passado, ou seja, de uma linearidade temporal e de categorias que lhes são correlatas.
O senso prático das estratégias governamentais:
Assim, em 07 de fevereiro de 2007, por pressão dos movimentos sociais, o governo federal promulgou o Decreto n.6.040 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Um dos pontos mais enfatizados pelos representantes dos referidos povos concerne ao reconhecimento jurídico-formal das terras que tradicionalmente ocupam aqui agrupadas sob a noção de "território tradicional". Até então o reconhecimento de direitos territoriais, à exceção dos povos indígenas e quilombolas, ocorria através da categoria imóvel rural e de seu cadastramento.
A partir da ratificação pelo Brasil da Convenção 169 da OIT, em 2003, tem-se uma maior abrangência do reconhecimento das "terras tradicionalmente ocupadas", que funcionam em sinonímia com a noção de "territórios tradicionais", compreendendo além de indígenas e quilombolas, as comunidades de fundos de pasto e de faxinais e também: seringueiros, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, pescadores artesanais, caiçaras, ciganos e pomeranos. Esta diversidade social encontra-se refletida na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que foi instituída através de decreto presidencial de 27 de dezembro de 2004 e reconfirmada por um segundo decreto em 13 de julho de 2006.
O decreto n.6.040 no seu Art. 3 inciso II assim define "territórios tradicionais":
"os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Atos das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações;".
Nos termos da justificativa a este artigo tem-se os argumentos que subsidiaram elaboração do decreto e constituem sua "Apresentação", que sublinham o seguinte:
"Assegurar o acesso ao território significa manter vivos na memória e nas práticas sociais os sistemas de classificação e de manejo dos recursos, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de distribuição e consumo da produção, além dos elementos simbólicos essenciais à sua identidade cultural. Assim, os territórios tradicionais além de assegurar a sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais tem vivido uma situação de agravamento das questões relacionadas às possibilidades de permanência em seus territórios."
Mediante estes novos dispositivos jurídicos temos uma síntese dos direitos territoriais e das formas de acesso à terra que caracterizam hoje a estrutura agrária do Brasil.
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